É comum ouvir que é importante ter um olhar gentil sobre a vida. Na empreitada de fazer um livro, um filme, ou mesmo uma singela newsletter, muito se fala em ter e desenvolver um olhar sensível para as coisas simples do cotidiano - que mexem com a gente, que viram assunto, que ganham importância.
Isso sempre foi um desafio para mim.
Bom, eu uso óculos desde os meus 10 anos. Desde que me lembro, eu vejo embaçado, meu astigmatismo nunca me permitiu ver com real nitidez. Além dele, já tive hipermetropia, que foi curada com o tempo, e miopia (o exato oposto) logo em seguida. Acho que é seguro dizer que nunca tive uma visão muito boa.
Até aí tudo bem. Mas, com meus 23 anos, fui diagnosticada com catarata nos dois olhos. Imediatamente veio o desespero, a negação - minha visão nunca foi perfeita, mas pera lá. Eu me obriguei a me acalmar, afinal, velhinhos têm e ficam bem. Cirurgia feita e aproveitamos para colocar meu grau aproximado na lente que substituiu meu cristalino opaco de catarata.
Dessa vez, vai! Agora é possível ter um olhar cuidadoso e sensível. Bom, mais ou menos, preciso do óculos para leitura, que nem uma senhora, porque agora meus olhos são incapazes de focar de perto (bem parecido com a câmera de telefone que não foca no objeto mais próximo).
Nesse período, é bem verdade que apreciei as luzes e sombras acima da janela quando acordava, as folhas nas copas das árvores que enxergava da varanda do nosso apartamento do 10º andar - mas tudo com um cadinho de apreensão, por saber que tinha melhorado e muito, mas que eu ainda tinha um resquício de miopia em mim.
Passados pouco mais de 2 anos, minha miopia me forçou a rever meu grau. Dito e feito. Óculos novos prontos e eis que descubro que, quando estou de óculos para longe, não consigo ver nada de perto. Não é que eles não me “ajudam”, mas, efetivamente, pioram a minha visão de perto, porque desfocam tudo a uma curta distância.
E todo aquele mal estar voltou, me dando um soco no estômago - meus olhos não enxergam nem de perto e nem de longe. Pode parecer bobo, mas é como sentir que você está falhando em fazer algo que é básico e que se perde muito do que os outros são capazes de ver.
Ao mesmo tempo que sei que a sensibilidade e gentileza nada tem a ver com condições físicas, eu sempre me senti pra trás nesse quesito, sempre achei que as pessoas conseguiam alcançar algo mais fundo.
Justamente nesse período, me deparei com uma passagem que refletiu esse sentimento de conseguir ver tão fundo, com tanta consciência:
O olhar de Gloria e de Nina: capaz de encarar até gravar cada detalhe e ter decidido o que fazer, como agir. Sempre achei que era mais míope, que sabia penetras as coisas menos do que elas.
- Cara Paz, Lisa Ginzburg
Apesar desse sentimento reverberar em mim, eis que estou aqui, escrevendo sobre as coisas simples do cotidiano e tentando ver isso tudo da forma mais gentil que posso. E fico feliz para caramba por me propor a abstrair a real condição dos meus olhos e colocar no mundo um pouquinho do que eu vejo.
Além de torcer para que esse meu olhar meio embaçado, meio míope e sem foco, continue vendo e experimentando o mundo de um jeito que eu possa ter um olhar sensível - e assunto para falar por aqui, rs.
Entre meus vários pares de óculos, o que tenho visto por aí:
Esse vlog da Tati pelo Rio de Janeiro, quando ela esteve por essas bandas durante a Bienal do Livro - depois de assistir, me falta seguir o roteiro dela.
Amor e Anarquia (disponível no Netflix): uma série curta, só duas temporadas, sobre a vida em uma editora sueca, tem humor, tem reflexões, além do plano de fundo a sobrevivência de uma editora no mundo moderno e digital.
A terceira temporada de Only Murders in the Building (disponível no Star+), que é uma delícia de assistir e se distrair depois de um longo dia de trabalho. Essa terceira temporada tem o teatro como pano de fundo com a ilustre Meryl Streep.
Eu sou muito sortuda pelo seu olhar gentil e carinhoso sempre, seja ele embaçado, míope ou sem foco, me afeta diretamente e me faz ver a vida mais leve.